Artista e Co-Artista: porque distinguir o som expressivo do não-expressivo

O que me interessa na distinção que elaborei ente som expressivo e som não expressivo é a relação humana entre o artista e os seus co-artistas (isso também pode ser uma categoria interessante, vou falar dela mais adiante). O som não expressivo, isto é, o som que uma vez foi expressivo, mas que foi registrado e é produzido autonomamente por algum dispositivo tecnológico não biológico, não gera uma relação distanciada dos afetos entre artista e co-artista. Enquanto o que eu chamo de som expressivo necessariamente estabelece uma relação afetuosa entre todos os participantes do evento cultural em questão. Não se trata de fazer um juízo de valor entre as duas produções sonoras, mas sim de enfatizar uma escolha estética: escolher artifícios que promovam uma interação afetuosa compactuada entre os participantes do ato artístico independentemente se o seu papel é de proponente desse ato (os artistas) ou de comparsa (os que, tradicionalmente, foram chamados de espetadores).

O esforço de integração que tento estabelecer entre os campos artísticos, se levado a suas últimas consequências, acabará levando também a integração entre todos os participantes do ato artístico cultural em questão. No cenário ideal em que a fragmentação das funções de artista e "não artista" desapareça a distinção entre artista e espectador também desaparece tornando ambos comparsas da mesma atividade, membros do mesmo culto (no sentido romano de cultivar algo, não necessariamente no sentido religioso).

 Algumas teorias contemporâneas tentam dar conta da ideia de um espectador ativo que faz sua presença sentida no espaço artístico e que, por vezes, até interfere ativamente na obra de arte como a noção de espect-ator de Augusto Boal, por exemplo. O ato de colocar o espectador como protagonista da ação cultural reflete também o desejo de uma arte horizontalizada que transcende barreiras entre fazedores e observadores e convida todos a participarem da obra. Estar como observador apenas também impõe um limite aos afetos trocados e possibilita a crítica não construtiva: o observador, não sendo parte da obra, pode, se quiser, criticar irresponsavelmente não estando implicado naquele culto. É muito mais fácil criticar uma prática da qual você não faz parte. Mas quando o espectador se sente como parte constituinte da obra ele também adquire as responsabilidades pelo seu sucesso.

Por esses motivos eu prefiro os termos artista e co-artista para nomear os papéis de cada participante no ato artístico cultural. O artista tem a responsabilidade de promover o acontecimento, mas ele necessita da sua comunidade cultural para que aquela manifestação tenha sentido. Os co-artistas não apenas observam a obra, mas participam dela ao observá-la, interagem com ela por diversos meios sejam eles aplausos, vaias, respirações que se seguram em momentos mais tensos ou, como o queria Boal, invadem o palco e cruzam até mesmo a fronteira entre artista e co-artista. 

Parte das experimentações da presente pesquisa está na proposição de um espaço-tempo onde o culto artístico possa acontecer de maneira integrada, seja na integração de formas de expressão como também na integração de todos os presentes. Este objetivo explica a distinção entre som não expressivo e som expressivo assim como a escolha preferencial por este último. Se o objetivo é possibilitar e estimular uma participação mais ativa de todos os envolvidos a terceirização da produção sonora para uma máquina vai na direção contrária ao que se almeja. Quanto mais responsabilidades ativas tiverem os participantes, maiores serão as oportunidades para as trocas de afetos que fundamentam o cultivo comunitário.

O objetivo último desta forma artística é a formação e o fortalecimento de laços comunitários entre os participantes. Sei que se trata de um horizonte ainda longínquo, pois teremos que descontruir e ressignificar séculos de processo coloniais e capitalistas de fragmentação e individuação da sociedade tanto material quanto simbolicamente.