Não faço teatro, faço circo.... ou será outra coisa?
Por 20 anos eu achei que eu fizesse teatro. Uma ilusão compreensível considerando que me formei no bacharelado em interpretação teatral, fundei uma companhia cujo nome do meio é "teatral" (Agrupação Teatral Amacaca) e passei os últimos 15 anos me apresentando em diversos espetáculos em espaços teatrais convencionais (palcos italianos fechados). Contudo, venho percebendo ao longo do tempo que a comunidade dos fazedores de teatro tem uma visão bastante restrita do que é o teatro. Essa visão é um resultado da separação dos campos artísticos em disciplinas especializadas que dificultam a classificação de produções artísticas híbridas.
Para a grande maioria da comunidade teatral, fazer teatro significa "atuar" preferencialmente falando um texto e tendo como base a construção de uma ou mais personagens. Evidentemente que o teatro pós-dramático possibilita que se faça teatro de diversas formas, porém continua sendo perceptível a dificuldade de classificação de uma obra quando esta sai do padrão determinado do que significa fazer teatro.
No caso da ATA, cantar, dançar, interpretar, tocar instrumentos, fazer acrobacias e utilizar elementos das artes circenses se mostra parte da constituição não apenas dos seus espetáculos individuais, mas também da identidade estética do grupo. Contudo, quando concorremos a premiações, por exemplo, não há categorias que contemplem a dança, o canto e as acrobacias. Se pretendemos concorrer ao prêmio de "melhor ator" (aceitando por um momento que seja possível comparar atuações em peças diversas da mesma forma como se compara performances esportivas) a única habilidade que é seriamente considerada é a "atuação" nos termos mencionados acima. Os elementos do canto, da dança, do malabarismo e do instrumentismo musical são vistos apenas como acessórios à sua atuação. Tampouco, em premiações teatrais, há uma categoria para dança ou canto ou malabarismo, para isso seria preciso se inscrever em uma competição específica para cada uma desses campos artísticos que, respectivamente, têm seus próprios viés característicos de suas comunidades específicas. Obras híbridas, portanto, ficam órfãs de categorias que possam avaliá-las com justeza.
Digo isso não para criticar o comportamento da comunidade teatral, mas apenas para evidenciar quais são os reais valores deste campo artístico. No seu discurso, o teatro se coloca como um mundo de possibilidades infinitas onde o imaginário pode livremente se expressar. Contudo, na prática, apenas o elemento da "atuação" é plenamente valorizado pelos pares, as premiações são apenas uma demonstração física desta postura.
A consciência desta realidade e a necessidade de precisão terminológica - característica de uma pesquisa acadêmica - me levaram a considerar que a prática que venho desenvolvendo se encaixa melhor na categoria de "circo" não porque se utiliza de malabarismos e acrobacias, mas pela característica inclusiva do "circo" enquanto forma artística. Ao contrário do teatro, o circo sim se constitui como um espaço de possibilidades infinitas onde acrobatas, dançarinos, cantores, malabaristas, figuras estranhas, páreas sociais, elefantes andando de monociclo, mágicos, ilusionistas e toda sorte de atrações se reúnem em uma grande categoria chamada "circo". Até mesmo a "atuação" na forma mais evidente do palhaço, mas também nas diversas modalidades do chamado "novo circo", está incluída neste evento espetacular. Possivelmente a ATA seria melhor representada em sua estética sob o nome ACA (Agrupação Circense Amacaca), mas como a licença poética é a lei universal de qualquer criação não precisamos ser tão terminologicamente minuciosos quando se trata de fazer arte.
Apesar da categoria "circo" representar melhor a forma artística que pratico, a comunidade circense (assim como suas premiações) possuem um viés específico voltado para as práticas virtuosas como malabarismos e acrobacias o que revela ainda mais a dificuldade em se classificar práticas artísticas híbridas como a que pretendo propor nesta pesquisa. Portanto, para o presente momento, resolvi que seria mais proveitoso, e mais intelectualmente honesto, não nomear e não classificar esta prática. Assim, pretendo manter um caráter inclusivo onde formas artísticas diversas possam se manifestar livremente (e também simultaneamente) em caráter de igualdade estética e expressiva. Em suma, a presente pesquisa tem como objetivo desenvolver técnicas e estratégias para que expressões oriundas de campos artísticos diversos possam se encontrar em uma única mesma prática artística.
Há apenas um fator determinístico que serve de recorte para a pesquisa: o interesse da presente exploração está nas formas de expressão realizadas ao vivo, isto é, cuja expressão é um resultado da ação direta do ser humano que age no mundo enquanto a ação ocorre e que desaparece assim que ele deixa de agir. Interessa-me o ato de expressão artística e não o objeto artístico que dele resulta. A dança de um dançarino, o malabarismo de um acrobata, o ato de pintar, esculpir, montar, atuar, cantar, pular, jogar, desenhar e tocar, todos essas ações estão no escopo do recorte desta pesquisa. Mas uma pintura, uma escultura, um vídeo, uma gravação sonora, um desenho, ou qualquer outro objeto ou produto artístico estão fora deste recorte. A ação multi-expressiva, independente da sua forma, é o objeto e o sujeito desta pesquisa e não o resultado desta ação. Interessa-me o pintor pintando, mas o objeto artístico "pintura" deixo para os pesquisadores das artes visuais. Interessa-me o camera man enquanto ele captura a imagem audiovisual, mas o vídeo captado deixo para os estudiosos de cinema analisarem. Interessa-me o musicista enquanto ele toca seu instrumento, mas o arquivo virtual contendo a gravação da sua música eu deixo para os estudiosos da música avaliarem.
Em suma, a presente pesquisa investiga o artista e as suas ações tanto internas quanto externas enquanto ele realiza o ato expressivo buscando estratégias e dispositivos que potencializem a sua poiesis na integração de expressões oriundas de múltiplos campos artísticos.
Nesse sentido, é e não é teatro, é e não é circo, no momento se constitui como algo que não tem nome, mas que, porventura, o processo poderá revelar um nome...talvez...
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