Matéria, Forma, Corporeidade e "Corpo-Obra-de-Arte"



Reflexões sobre o texto:  ALMEIDA, Márcia. *Arte Coreográfica: plasticidade corporal e conhecimento sensível*. in: ALMEIDA, Márcia (org.) A cena em Foco: artes coreográficas em tempos líquidos. Editora IFB: Brasília, 2015.

"Mais precisamente, discorrerei sobre a implicação dinâmica entre matéria (dançarino) e forma (movimentos dançados) da corporeidade. Primeiramente pelos afetos sensíveis da relação da pessoa com o ambiente. E, em segundo lugar, pela forma processada na execução da dança, na Arte Coreográfica, dada à corporeidade (a soma da matéria mais a forma) que se transforma em Corpo-Obra-de-Arte." (p.92-93)


Achei bem interessante essa noção tanto de "Corpo-Obra-de-Arte" quanto a definição de corporeidade como a junção da matéria com a forma. Fiquei me perguntando como seria isso para a minha pesquisa, onde a matéria é o corpo do artista, mas também os objetos e instrumentos que ele manuseia e a forma é tanto o movimento quanto o som (seja ele provocado pela voz ou pelo manuseio de instrumentos)


Me interessa pensar o conceito de Corpo-Obra-de-Arte, pois enfatiza que a arte que se manifesta no artista que transcende campos artísticos é o seu próprio corpo (principalmente porque é a matéria que de fato transita por campos artísticos. Um violinista é violinista enquanto faz música, mas quando vai dançar já não é violinista a não ser que ele dance com seu violino. Contudo, o seu corpo está sempre com ele.)

"o dançarino é ele mesmo a obra de arte, mas nem todo indivíduo é uma obra de arte. Explico melhor: eu não vejo uma escultura em uma arvore do jardim em frente, que se apresenta exuberantemente diante dos meus olhos; contemplo sua beleza, posso estetizar esse fenômeno da natureza, mas isso não faz dessa árvore um objeto artístico. Sendo assim, a pessoa que descansa embaixo dessa árvore não é a obra de arte coreográfica. Por mais bela que a pessoa possa parecer, por mais que seus movimentos sejam graciosos mesmo assim ela é e será, enquanto ali permanecer, apenas uma bela pessoa com belos movimentos que descansa sob a sombra da árvore

Quando a árvore é cortada e levada para o ateliê, passa a ser o material bruto da obra de arte a que se destina. Seguindo esse raciocínio o dançarino é o material bruto da arte coreográfica. É bom sublinhar que existe uma diferença abismal em ser a matéria da obra de arte e ter o corpo instrumento para a dança. O primeiro é ser a coisa, é saber transformar a sua ideia em algo visível corporalmente." (p.96)

Interessante que ela separa o movimento intencionalmente artístico do movimento não intencionalmente artístico. Para um corpo ser obra de arte, para ela, ele precisa realizar uma ação intencional que, para mim, seria uma ação expressiva. O que não invalida a minha proposta de que o meu corpo é sempre uma obra de arte, pois, não é porque não estou realizando um produto artístico que não estou esculpindo o meu corpo-obra-de-arte. Aliás, talvez não seja apenas um corpo obra de arte, mas uma vida obra de arte, pois não se trata apenas de esculpir a matéria (aspecto semiótico da obra), mas também as implicações não-semióticas do ser artístico. É um modo de vida, mais do que um ofício. De alguma maneira ela faz essa ressalva quando enfatiza que o corpo não pode ser um instrumento artístico um pouco mais adiante no parágrafo. "No caso de instrumentalidade, eu tenho a técnica ao meu favor. É a técnica o instrumento que utilizo para me compor enquanto obra de arte. Eu me utilizo da técnica (techné), acuidade corporal, para ter autonomia criativa, assim como eu me utilizo da máquina de lavar roupas para ter autonomia do meu tempo." (p.97)

"No que se refere à arte coreográfica, não existe diferença entre o material e o artista. O dançarino é ele mesmo a matéria- prima que, talhada por ele mesmo, será, no momento da execução da dança, um Corpo-Obra-de-Arte." (p.97) Para mim, o "no momento da execução da dança" é que me incomoda. A não ser que se considere que a dança possa extrapolar o espetáculo ou a sala de apresentações.

Nas páginas 97 e 98 ela define e dá um exemplo maravilhoso do que é estetizar um objeto ou uma ação cotidiana. Mas enfatiza que isso não a torna necessariamente artística.

"No entanto existe uma confusão com relação à Arte Coreográfica que, ao invés de as pessoas tentarem apreender a Arte como um objeto artístico, se voltam para apreciações acrobáticas, descritivas, eróticas, teatrais, em que as pessoas só sabem interpretar um drama de sequencias estóricas infrutíferas. Os próprios artistas da dança confundem a dança. Muitos acreditam que a sua arte existe em função de uma música e que, a partir dela, eles expressam e interpretam na dança a música através de seus sentimentos, que são engendrados neles mesmos pela música, ou seja, a dança fica subjugada à musica enquanto não há, ou não deveria existir, hierarquia entre as artes" (p.112) 

"De fato, a dança se expressa por gestos dançados que, por sua vez, são diferentes do gesto banal do cotidiano. Esse último pode ser até interpretado, pois apresenta familiaridade relativa ao ambiente social. Já os gestos dançados na arte coreográfica têm uma potência virtual que não pretende representar a realidade. Na arte coreográfica, o gesto dançado quer apenas expressar sua poesia e nada mais. Ele produz uma expressão artística para além da estética, cuja reverberação corporal do espectador é mais sensível que inteligível. Ele não comunica conceitos, ele imprime afetos" (p.113)

"A arte coreográfica engendra o conhecimento sensível. Como toda Arte, ela não tem referencial, não tem uma linguagem referencialista, ou seja ela não propõe uma representação da realidade, embora seja dela um produto. A potencialidade de prolongar, em formas inéditas, o movimento corporal criando modos singulares de expresso é o que vamos chamar de Arte Coreográfica. Quando a pessoa cria uma obra de arte, insere sua própria ideia no mundo." (p.111-112) Talvez eu devesse definir o que eu entendo por arte. Pois, neste texto, Almeida adota uma ideia de que a arte deve propor uma intriga filosófica (Arthur danto). Essa definição diferencia o objeto artístico do objeto meramente estetizado. Mas, para mim, isso representa a definição de obra de arte e não de artista. Pois, produzir obras de arte, para mim, não faz daquela pessoa um artista. Para ser um artista, é preciso adotar um modo de vida artístico, isto é, aquela intriga filosófica precisa ser também uma filosofia de vida. Senão, o artista será artista apenas enquanto ele produzir obras.




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