Sobre incluir a Capoeira na minha discussão sobre multi-performance

 DUMAS, A. G. (2022) Nomear é Dominar? Universalização do teatro e o silenciamento epistêmico sobre manifestações cênicas afro-brasileiras. Revista Brasileira de Estudas da Presença, 12(4), 1-21. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/index.php/presenca/article/view/121806

    Neste artigo a autora discute como as manifestações cênicas brasileiras são vistas e medidas a partir da ótica do teatro europeu e branco. Essa discussão me fez refletir sobre maneiras de abordar a capoeira dentro do meu estudo de multi-performance.

A capoeira é categorizável?

    A primeira consideração que gostaria de fazer está na ideia de nomear, pois como posso nomear o que é a capoeira? Não é uma dança, não é canto, não é teatro, não é arte marcial, não é acrobacia e nem é música, mas ao mesmo tempo é todas essas artes ao mesmo tempo e... apesar de tudo, não é. A realidade é que a capoeira não é subordinada a nenhuma categoria artística, talvez não seja nem mesmo "arte" no sentido que a entendemos dentro do contexto de uma produção estética que visa um público. Talvez a capoeira esteja num campo mais próximo da performance, mas ainda assim parece uma subordinação que não faz jus ao que de fato é a capoeira. Para começar, além de apresentar todas essas habilidades descritas acima, a capoeira também é comunidade, relação, festa e, para alguns, tem um caráter até mesmo espiritual. 

    Assim sendo, acredito que a melhor maneira de se categorizar a capoeira seria criar uma categoria a parte apenas para ela por ser tão única enquanto fenômeno cultural. Não a capoeira como dança, arte marcial, teatro, música, canto, cultura popular, manifestação afro-brasileira, cultura brasileira ou qualquer outra denominação que faça referência à uma categoria superior da qual a capoeira faria parte. Mas sim: há a dança, há o teatro, há a cultura popular, há artes marciais e há a capoeira em par de igualdade com esses outras categorias.

    Ao meu ver, qualquer categorização que coloque a capoeira subordinada a uma manifestação cultural branca, embranquecida ou europeia está fazendo o papel do colonizador, pois tenta inserir um fenômeno não branco dentro de uma categoria compreensível para mentes colonizadas ou colonizadoras. Também não me parece correto associar à capoeira à nação ou "cultura brasileira" uma vez que o Brasil não é uma entidade cultural definida, mas sim um estado que, por meio de um processo histórico, tenta aglomerar culturas diversas em seu grande guarda-chuva de poder. Quanto menos definido for a ideia de Brasil, mais facilmente ela poderá incluir sob a sua influência culturas heterogêneas.

    O aspecto multi-dimensional da capoeira

    Num outro entendimento, a capoeira é uma manifestação claramente multipla nas habilidades que ela exige dos seus participantes. O capoeirista tem que saber jogar os diversos jogos da capoeira, cantar os corridos e ladainhas, tocar todos os instrumentos da roda, se relacionar com seus companheiros, lidar com as opressões e, além de tudo, ter o maestria da mandinga e da malandragem. Tudo isso ao mesmo tempo. Neste entendimento, me parece que uma alternativa decolonial para a minha pesquisa passaria necessariamente pela observação da capoeira angola como exemplo de fenômeno cultural múltiplo do qual eu faço parte e que tem intercâmbios e paralelos com o meu trabalho como multiartista-cênico ou multi-performer, etc...

    E ainda tem o aspecto da improvisação que é um paralelo claro entre a capoeira e a forma como aprendi a fazer teatro e todas as outras artes que, para mim, estão unidas.

    Nesse aspecto da unidade, me pergunto se é necessário nomear o que estou fazendo, ou até mesmo se é possível. Ou se uma abordagem como a de Bruce Lee seria mais interessante: o que é que funciona? Que mecanismos funcionam? Ainda que esses mecanismos não sejam facilmente delimitados numa categoria e nomeados.


Sobre o uso da capoeira por acadêmicos

FREITAS, Mabel. Educação antirracista. Salvador: Assembleia Legislativa, 2023.

Nestre livro, o angoleiro Bruno Rodolfo Martins reflete sobre como a capoeira foi utilizada perversamente pela classe dominante branca intelectual da transição do século XIX ao XX ao mesmo tempo excluindo seus participantes negros e "valorizando" a capoeira como uma "ginástica" genuinamente brasileira. Uma falácia que escancara o racismo institucional no Brasil.

    Refletindo sobre essa questão eu me pergunto: como posso incluir as abordagens pedagógicas multi-artisticas com as quais entrei em contato nesses 7 anos como angoleiro sem atropelar os conhecimentos de quem veio antes de mim nessa trajetória? Evidentemente que com respeito se vai longe, mas qual tipo de respeito? Qual é a melhor forma de abordar o tema sem reforçar mecanismos racistas estruturais que me colocaram eu, homem branco de classe média, na posição privilegiada de poder escrever alguma coisa sobre capoeira no contexto de pesquisa acadêmica? E isso se agrava pela minha trajetória ainda limitada dentro da capoeira, pois, se para o observador leigo, 7 anos pode parece um bom tempo (afinal, em 7 anos se faz um mestrado E um doutorado), para o angoleiro, 7 anos é o mesmo que estar na escola primária da capoeira (um pouco acima do jardim de infância, mas ainda iniciando seus estudos). 

    Sinto que a principal preocupação é a de não ignorar a capoeira como manifestação multi-disciplinar (o tema desta pesquisa) e nem a minha humilde trajetória dentro dela sem a ousadia de querer ocupar o lugar dos mestres e mestras tradicionais.

    Ignorá-la também seria um ato de reforço de estruturas racista, pois como poderia eu, um capoeirista de angola, discutir questões de multi-disciplinaridade e multi-dimensionalidade artística, sem mencionar uma prática tão múltipla e tão presente em minha vida? E, se eu não for referenciar a capoeira, talvez eu não tivesse outra alternativa que não referenciar apenas... europeus... e isto seria uma grande tragédia, pois invizibilizaria mais uma vez contribuições epistemológicas que não partem desta matriz colonizadora.







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